domingo, 7 de março de 2010

Citação do dia



Conivência ou encobrimento?


Na comissão Parlamentar de Ética afirmei que todos os dados disponíveis apontam para que existe actualmente em Portugal não apenas «conivência» mas «encobrimento» do poder político por parte do poder judicial.

E quando digo poder judicial refiro-me à cúpula da Justiça e não aos tribunais, aos juízes ou aos magistrados.

Quais são esses sinais?

Vou enumerá-los um a um, para que não haja dúvidas.

Quando o SOL publicou a primeira notícia sobre o caso Freeport, o procurador-geral da República veio a público, no próprio dia, desmentir o jornal.

O título da notícia, como o leitor se recordará, era Ingleses apontam o dedo a ministro português.

Não dizíamos quem era o ministro e muito menos falávamos em José Sócrates.

Mas o PS tocou a rebate – e Pinto Monteiro veio dizer que não havia qualquer carta das autoridades inglesas, nem qualquer suspeita sobre um membro «deste ou doutro Governo».

Só que a notícia era totalmente verdadeira – e Pinto Monteiro teve depois de dar o dito por não dito.

Quando rebentou o caso Face Oculta, Pinto Monteiro disse ao semanário Expresso, em jeito de desabafo, que se fosse preciso punha as escutas cá fora, e assim dissipavam-se de uma vez por todas as suspeitas.

É claro que Pinto Monteiro sabia muito bem que isso não era possível.

E apenas o disse para transmitir a ideia de que, naquelas escutas, não havia nada de menos claro.

Recorde-se que, uns dias depois, Armando Vara viria dizer mais ou menos a mesma coisa – solicitando autorização para divulgar as escutas em que ele intervinha, o que também não era legalmente exequível, como Vara estava farto de saber.

A divulgação das escutas, feita pelo SOL, teve o mérito de fazer cair as máscaras e pôr tudo em pratos limpos.

Ficou claro que as conversas contêm dados muitíssimo comprometedores, não só sobre a existência de um plano para condicionar alguns órgãos de comunicação social mas sobre a enorme promiscuidade entre o Governo e empresas onde o Estado tem interesses.

O negócio com Luís Figo é disso um lamentável exemplo.

Quando se viu desmentido pela publicação das primeiras escutas – que não eram irrelevantes, como afirmara –, Pinto Monteiro mudou de agulha e passou a dizer que não havia nelas indício de «nenhum crime».

Dando de barato que o PGR tenha deliberado sobre isso sozinho, sem mandar abrir um inquérito, a sua opinião era tudo menos consensual.

Ainda na semana passada, Diogo Freitas do Amaral escrevia: «O caso das escutas só é ‘meramente político’, como diz o PGR, porque este optou por uma concepção muito restritiva do conceito de ‘atentado ao Estado de Direito’».

Esta actuação do PGR veio recordar outro caso, que já estava meio esquecido: o problema do diploma.

Também aí foi Pinto Monteiro a concluir, acedendo a uma solicitação de José Sócrates, que não houve qualquer irregularidade no modo como o primeiro-ministro obteve o diploma na Universidade Independente.

Na altura, toda a gente aceitou como boa a conclusão de Pinto Monteiro.

Mas agora, tendo conta a protecção que o PGR tem dado a Sócrates, também isso é passível de dúvidas.

A suspeita mais grave de todas não é, porém, nenhuma destas.

A suspeita mais grave, que é muito difícil o procurador explicar, é a seguinte: ele sabe há muito tempo que os suspeitos foram avisados de que estavam sob escuta – e que, a partir de 24 de Junho de 2009, as conversas não merecem credibilidade.

Pois bem: Pinto Monteiro, no despacho que fez sobre o caso, enfatiza especialmente uma escuta de 25 de Junho que ‘iliba’ o primeiro-ministro no caso da TVI – escuta essa em que se diz, pela boca de um boy (o impagável, embora bem pago, Rui Pedro Soares), que Sócrates não foi avisado do negócio e está contra ele.

Para proteger o primeiro-ministro, o PGR valorizou, pois, uma conversa que sabe não merecer crédito (e que, com toda a probabilidade, foi forjada).

É a história do gato escondido com o rabo de fora.

Como irá Pinto Monteiro explicar isto – que parece constituir a prova definitiva de que agiu conscientemente para encobrir o chefe do Governo?

Ao ‘abafar' o caso do diploma, ao desmentir notícias do Freeport que depois se confirmaram, ao arquivar certidões do caso Face Oculta sem abrir inquérito, ao desvalorizar escutas que se provou serem relevantes, ao não encontrar quaisquer indícios de crime onde outros encontram, e sobretudo ao valorizar escutas que ele sabia não serem dignas de crédito, o procurador mostrou completa falta de independência.

Pretendeu esconder, iludir, baralhar, desmentir informações, sempre com o mesmo objectivo: ilibar José Sócrates.

Nestas condições, creio que o Presidente da República não tem já alternativa que não seja retirar a sua confiança ao procurador-geral da República.

Pinto Monteiro deixou de ter junto dos portugueses a imagem de isenção e credibilidade necessárias ao exercício da sua elevada função.

Não quero acabar esta crónica sem uma nota sobre o presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

Numa mesma noite – e num acto absolutamente inédito em termos nacionais e talvez mundiais, pelo menos em países democráticos –, Noronha Nascimento deu três entrevistas a três televisões.

No essenciaI, o presidente do Supremo disse que, nas escutas a José Sócrates que ouviu, não havia nada de criminalmente relevante.

Aquelas três entrevistas transmitidas quase em simultâneo, como se algo de muito grave tivesse sucedido em Portugal, tiveram como principal consequência a defesa do primeiro-ministro.

E, dado o momento de tensão que se vivia, assumiram um inquestionável significado político.

Ora, Noronha Nascimento tinha obrigação de ter pensado nisso.

Se o fizesse, evitaria envolver-se na luta político-partidária que se vivia e vive.

José António Saraiva
SOL

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