terça-feira, 2 de março de 2010

Porque nem todos chafurdam no chiqueiro socratino


As explicações prestadas por Noronha Nascimento e Pinto Monteiro deixaram a opinião pública ainda mais confusa

As explicações do presidente do STJ e PGR

A propósito das escutas telefónicas reveladas pelo semanário Sol, a direcção nacional da Associação Sindical de Juízes, em editorial, afirma que “começa, publicamente, a questionar-se a real autonomia do Ministério Público e a efectiva independência do poder judicial. Porque, perante os factos ora divulgados, os cidadãos não compreendem as razões que levaram aquelas autoridades judiciárias (PGR e presidente do STJ) a desvalorizar os indícios recolhidos no inquérito”. E acrescenta ser “um imperativo democrático que as principais autoridades judiciárias prestem os esclarecimentos que têm a prestar. E que o façam imediatamente, de forma cabal e definitiva, para que, uma vez por todas, não fiquem quaisquer dúvidas sobre os seus procedimentos e decisões”
A avaliar pelo que se tem dito e escrito ultimamente acerca desta questão, as explicações públicas até agora prestadas por Noronha Nascimento e Pinto Monteiro, em vez de esclarecerem a opinião pública, deixaram-na ainda mais confusa. Perante a ausência de explicações claras, importa descrever o que, teoricamente, dizem as normas processuais penais e os princípios gerais do direito sobre a instauração dos inquéritos, bem como quais são as funções do Ministério Público e do juiz de instrução criminal relativamente a esta matéria. Como muito bem diz o prof. Jorge Miranda, falando da autonomia do MP: “Absolutamente essencial é que não se caia numa situação ambígua e pouco transparente no que quem é, na realidade, o MP e ao que faz no processo penal, de maneira a que, travestido embora de magistrado, não passe afinal de contas de um órgão politicamente dependente e orientado. Isso poria em jogo o mandato essencial do Estado de Direito de dar a César o que é de César e ao Direito o que é do Direito” (cf. Constituição Anot.-III-246).
Importantes são, pois, as ilações a extrair da autonomia do MP, consagrada nas normas constitucionais, no domínio da realização efectiva das funções que lhe competem, nomeadamente ao nível das relações do MI) com a sociedade e o Estado: zelar pela manutenção dos valores existentes e aceites pela Constituição; prosseguir a materialização dos valores novos que aquela impõe ao Estado; obrigação de proceder criminalmente contra todas as infracções criminais de cujos pressupostos tenha tido conhecimento, uma vez que o interesse público do jus puniendi (direito de punir) é indisponível, ou seja, não depende nem do MP nem das partes envolvidas.
É ao Ministério Público que compete obter a prova dos elementos constitutivos do crime. A lei formula o quadro de situações da vida real que considera deverem ser incriminadas, assim criando os chamados tipos legais de crimes. E para que possa integrar uma infracção criminal é necessário que a conduta do eventual arguido coincida formalmente com a descrição feita em norma incriminadora. É dentro deste quadro que se tem de mover o MP e o julgador.
Relativamente ao impulso processual inicial, o primeiro princípio a observar é o da legalidade, isto é, o MI), como titular da acção penal, está obrigado ao impulso inicial e sucessivo do inquérito, logo que obtenha conhecimento do crime e, posteriormente, se existirem elementos suficientes, deve proceder à respectiva acusação. Ensinam os nossos penalistas que a cada uma das entidades (MP e juiz de instrução) “não é concedida qualquer margem legal para razões de conveniência ou oportunidade, nomeadamente de ordem política, social, económica, ou sequer humanitária, na promoção processual”. Tal princípio está consagrado no n.° 2.0 do art. 262 do CPP ao dispor que, “ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito’. Essas excepções, segundo a doutrina, dizem respeito, por uma questão de economia processual, aos casos de denúncia em que perante os factos descritos seja manifestamente evidente a não existência de crime. Por exemplo, quando se denunciam factos de cuja leitura resulta, com manifesta evidência, tratar-se de uma questão cível. Mas, se houver indícios de crime ou mesmo dúvidas da sua existência jurídica, não é possível utilizar o “despacho liminar de arquivamento”, sendo obrigatória, de acordo com o princípio da legalidade, a abertura de inquérito através do respectivo formalismo do “registo, destribição e autuação”. O MP e o juiz de instrução criminal não estão vinculados à qualificação jurídica do crime que exista na denúncia, de modo que tal qualificação poderá ser alterada na acusação ou pronúncia ou até mesmo na sentença final.
Como fundamentos do impulso inicial do processo apresentam os autores as seguintes razões: prevenção geral, no sentido de que todos os arguidos ficam cientes de que serão apuradas as suas responsabilidades, tendo necessariamente de prestar contas à justiça formal; exigência constitucional de que todos são iguais perante a lei, de modo a afastar a ideia de que alguns são mais iguais que outros; é uma garantia contra o arbítrio estatal e uma justiça politizada. Deste modo, o MP, como promotor do início processual, fica a coberto de pressões externas, e não poderá, por determinação interna e externa, arquivar certos casos polémicos ou favorecer alguns arguidos altamente colocados. A não promoção do inquérito ou a sua não prossecução, quando devidas, faz incorrer o MP em responsabilidade disciplina e criminal.
Se o MP proferir despacho liminar de arquivamento, legalmente inadmissível, ou o juiz de instrução exarar despacho de destruição das escutas (havendo nelas indícios de crime), então estamos em presença de uma nulidade insanável, por falta de inquérito (art. 119-d), podendo esses despachos ser declarados nulos oficiosamente, a todo o tempo, e deste modo fazer seguir o respectivo processo de inquérito, com vista a apurar da existência ou não de crime (art. 414 do CP).

Narciso Machado
Juiz desembargador jubilado

Extraído, sintomaticamente, da página Sindicato dos Magistrados do Ministério Público




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