quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

"A casa do emigrante"



A casa do emigrante
por Helena Matos:

Foram anos a libertar-se desse passado em Couvadoude, Rapoula, Valhelhas… e agora as fotografias das casas caíam em plena Lisboa. Quem pode falar de modelo finlandês ou de MIT quando fez projectos para casas de emigrantes em Covadoude? É a estética do poder e não a ética da política aquilo que preocupa Sócrates.

Na verdade Sócrates sabe que os portugueses já viram o que tinham a ver sobre o seu actual primeiro-ministro. As revelações em torno da sua vida académica, a governamentalização da CGD, as trapalhadas da OTA, a aprovação com carácter de urgência do Código de Processo Penal… nada disso indignou verdadeiramente a Pátria. Na verdade fê-la sorrir. E o que Sócrates teme acima de tudo é que esse sorriso, apesar de tudo ainda eivado de indiferença, se transforme em riso algures entre o desdém e a histeria.
E convenhamos que a casinha de Valhelhas tem material estético suficiente para tirar a Sócrates o que ele mais preza: essa espécie de patine que transformou um rapaz esperto da província num líder que diz, sem rir, que se está a fazer História.
Sócrates não ignora que essa espécie de ’sushi gauche ex-caviar’, que para efeitos mediáticos constitui o mundo da cultura e que não o apoiando directamente como fez com Soares também não o hostiliza, transformou o termo emigrante em sinónimo de mau gosto. É óbvio que esse mundo da cultura fala com admiração das canções dos espanhóis e italianos que emigraram para a Argentina, alguns deles adoram até fazer documentários sobre os imigrantes em Portugal, sobretudo se esses imigrantes forem africanos e logo cumprirem o papel-tipo que está reservado aos negros nestes guiões auto-denominados interventivos. Muitos estão dispostos a consumir as versões épicas e xaroposas sobre a emigração irlandesa para os EUA mas jamais concederão o mesmo olhar aos emigrantes portugueses.
Esses homens e mulheres que em meados do século passado partiram em busca duma vida melhor são para eles e para os seus clones de direita uma mácula na paisagem e um grão de areia na engrenagem das ideologias. Para a direita, eles cometeram o erro de não se terem conformado com a pobreza, preferindo a aventura da passagem a salto a uma vida entre courelas, regida pelo princípio “habitualidade”. Para a esquerda os emigrantes cometeram o pecado capital de não ficar à espera que a revolução os libertasse. Libertaram-se eles mesmos e isso nunca lhes foi perdoado. A estas reservas políticas juntaram-se as estéticas quando os emigrantes resolveram exibira sua recente libertação ou melhor dizendo moderna abastança. Nada que nunca se tivesse visto antes: quem não ouviu falar das “casas de brasileiro”? Mas não só os “brasileiros” eram em muito menor número do que estes seus descendentes nos sonhos, como a França, a Alemanha ou o Luxembrugo, ao contrário do que acontece com o Brasil, ficam logo ali. Assim mal chegava o Verão era vê-los a conduzir loucamente carros novinhos em folha, para chegarem mais depressa e logo mais cedo impressionarem a terra a que continuavam a chamar sua, apesar desta nunca lhes ter dado nada. Para amenizar os quilómetros traziam cassettes com canções que referiam romarias, saudades, aldeias e namoros. Por ironia do destino a estes cantares dá-se, com ar perjorativo, a designação de “música de emigrante” enquanto se reserva a expressão “música popular” para o repertório que as élites acham não tanto que o povo cantou mas sobretudo que devia cantar.
As élites tremeram de horror quando, nos anos 60 e 70 do século XX, perceberam que os meninos a quem eles até há pouco davam sapatos velhos movimentavam agora contas bancárias com a mesma destreza com que anos antes manejavam fisgas e “armavam aos pássaros”. Mas o pior de tudo foram e são as casas. Em poucos assuntos haverá mais preconceitos e lugares comuns do que a propósito destas casas. Por estranho que pareça o escândalo não é que José Sócrates com uma formação académica pouco credível tenha colocado assinaturas em projectos que não eram seus mas sim que esses projectos sejam de “casas de emigrantes”.
Creio contudo que se percebe muito melhor Sócrates depois desta investigação do PÚBLICO. Ao olhar para aquelas casas entende-se de que país foge Sócrates. Percebe-se melhor a pidesca ASAE, a obsessão com a facturação dos ginásios e até muita da pesporrência com que fala das e para as pessoas. Cada vez que se lembra Couvadoude, Rapoula e Valhelhas Sócrates deseja mergulhar nesse universo Second Life que constitui a contínua apresentação das medidas governamentais, um universo higienizado, regulamentado nos seus mais pequenos gestos e onde o Estado é uma espécie de grande fiscal do gosto e big brother do fisco.
Infelizmente Sócrates não aprendeu nada humanamente com esta sua experiência profissional. E não por falta de matéria. Ao ler-se a investigação do PÚBLICO encontramos pessoas dispostas a pagar para acelerar os processos perdidos num enredo de entidades licenciadoras - câmara, comissões de coordenação, ministério da Agricultura, Direcção-Geral do Planeamento Urbano - entidades essas que a par de pareceres técnicos vários e contraditórios escrevem palermices como esta: “por se tratar de um prédio muito estreito, resulta inesteticamente feio.” Mas palermices como esta não só podem impedir uma pessoa de fazer a casa que quer como promovem que, em todos os degraus da administração pública, apareça sempre alguém que faz a tal assinatura. Foi isso que Sócrates trouxe de Valhelhas: a noção de que, no Estado, o verdadeiro poder está nas gestão das assinaturas.

Público
6/2/2008

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